sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014




























Da próxima vez não irei sozinho
guardo-te o pão e o vinho
Acenderei a lanterna dentro do peito
para que veja o caminho
Sorrirei às aves que passam
e soletrarei o teu nome baixinho

Da próxima vez eu adivinho
qual o vinho que te levo
se aquele em que te sonho
se aquele em que sôfrego te bebo

e também qual a música que ponho
se aquela em que te choro
se aquela em que te sonho

Da próxima vez eu juro
não irei sozinho
levarei comigo o muro
que lentamente ergueste
aquele onde escondeste
todas as farpas que me atiraste
todas as setas que falhaste
e todas as que acertaste também

Da próxima vez chamo-te baixinho
à janela dos meus olhos
e ponho-me a jeito
para mais uma farpa no peito
que já é uma ferida
de tanto te amar

Da próxima vez
eu juro
que me vou calar
e só os pássaros me ouvirão chorar!

são reis

270214




























E depois de ventos e tempestades
de me ser em metades
ao invés de ser inteira
a única coisa real e verdadeira
que me sobra
é essa ternura que me soçobra
essa vontade de ser rosa
em pleno inverno
de ser palavra quando apenas
o silêncio basta
de ser muro e ser abismo
de ter asas e poder escolher
entre voar ou ficar

E depois de tudo passado
resta-me esse vento suave
que me passa ao lado
que me abana
sem me fustigar
esse sol que me aquece
sem me queimar
essa vontade de ser chama
e alumiar
quando não sei que caminho tomar!

são reis
280214

















Preciso habituar-me ao cair da chuva
na minha pele
a esse monólogo cadente e distante
que doravante
vai cair sempre

Preciso habituar-me ao silêncio
e à beleza de uma pingo de chuva

Não é uma lágrima
não tem tanto sentimento
mas anda perto
É pura como ela
e na pior das hipóteses
alivia o sofrimento

são reis
270214

























A tua mão na minha mão
ambas as nossas mãos
cerradas e coniventes
esventrando noites
plantando sementes
sendo assim tão simplesmente
um abraço dado
onde o corpo empresta a voz
sendo apenas eu
apenas tu
apenas rios ,ilhéus
desaguando na mesma foz

são reis
270214



































O TEU OLHAR NOS MEUS OLHOS

Sempre onde tu estás
Naquilo que faço
Viras-te agarras os braços

Toco-te onde te viras
O teu olhar nos meus olhos

Viro-me para tocar nos teus braços
Agarras o meu tocar em ti

Toco-te para te ter de ti
A única forma do teu olhar
Viro o teu rosto para mim

Sempre onde tu estás
Toco-te para te amar olho para os teus olhos.

-- Harold Pinter *

arte de John Everett Millais (Sweetest eyes were ever seen )























Ninguém me disse
que a saudade é uma flecha ensaguentada
que esgarça e rasga o mais duro e couraçado peito

Ninguém me disse
que os incêndios são demónios soltos
em peitos já muito doídos
feitos por muitas setas ensaguentadas

Ninguém me disse
que os olhos podem sair das órbitas
e as mãos arrancarem os cabelos em desespero
que as aves podem não voltar
na próxima primavera
ou os campos se recusarem a florir

Ninguém me disse
tanta coisa
e tanta coisa passa por mim
inevitavelmente
como um comboio a quem impõem o travão
e ele simplesmente não pára
porque não consegue

Ninguém me disse
que os dias ardem como folhas de papel
consumindo todas as palavras
que não se disseram
e que as têmporas quase explodem de dor e raiva
como se o coração batesse nelas e não dentro do peito

Ninguém me disse
que as escadas do meu corpo
eram o caminho mais direito
para o inferno
e no entanto eu consumo-me
no patamar dos dias que ainda hão-de vir!...

são reis
270214






























AGORA!

Agora que encontro o silêncio feroz
e te ensino de onde venho
e de onde parto
para onde vou
porque me rasgo
Agora que as palavras se esgotam
e entre nós nada mais há
Agora posso dizer-te
que eu sou a calma
e a razão
a opulência e a paixão
sou um romântico perdedor
sou a chama de um amor

Agora que as aves se calaram
e todos os ninhos aos teus olhos recolheram
que as trovas acabaram
e o mundo está rindo de nós

Agora que as aves rumaram
a outras paragens
que as vozes se calaram
porque já choram
agora que há aragens
onde haviam os teus dedos

Agora posso dizer-te
sem segredos
Fazes-me falta!

são reis
270214


























JÚBILO NOCTURNO


Jubila a noite nos teus seios
Que à luz do espelho teu corpo quebra
Angular presença dobrada sobre o ventre
Imortal o gesto que o momento fixa.

Subtil e sensual a noite se insinua.
Entre fragrâncias e íntimas vontades
Se adensa o sortilégio das figuras.

De silêncios incandescentes os corpos
Se envolvem, na suprema vontade de se darem
Clamando o sangue uma vontade que seja
De abraçar a noite como se fora dia.

Joaquim MONTEIRO
2013-06-01
(© todos os direitos reservados)